Ao refletir sobre o desamor que encontramos no ambiente de trabalho, ressalto a importância da construção de uma ética amorosa, uma força transformadora capaz de gerar, na prática, diversidade, inclusão e o pertencimento no cotidiano das organizações
“Junho é um mês repleto de eventos que celebram a diversidade, os nossos afetos e as nossas identidades plurais: é o mês do Orgulho LGBTQIA+, com um dia dedicado aos amores. Queria poder dizer que decidi escrever aqui para compartilhar como práticas amorosas também são a tônica dos espaços corporativos. Foi a falta delas, no entanto, que me fez saber o quanto é importante falar de amor em espaços midiáticos, como nessa coluna.
Como executiva da área de pessoas, todos os dias escuto muitas histórias que ilustram a importância de voltarmos o nosso olhar e nossos ouvidos para esse tema. Seguindo, portanto, o caminho inverso dos textos que celebram o amor no mês de junho, peço licença para abrir parênteses aqui. Vou contar histórias de desamor, para que, frente a elas, saibamos identificar a necessidade do amor enquanto força e prática que nos conduz rumo às mudanças que queremos promover em nosso entorno.
Há poucas semanas, por exemplo, um colega atual de trabalho disse, durante uma comemoração da firma, que antes de trabalhar conosco ele recebia feedbacks constantes sobre gesticular e cruzar as pernas demais. Era pressionado para performar uma masculinidade estereotipada nas apresentações e workshops que conduzia. A cada situação ou pedido desses, sentia sua individualidade sendo negada por uma insistente exigência para deixar de ser quem é.
Essa história me lembrou outra, de uma pessoa que, durante uma entrevista, revelou a razão de querer abandonar o emprego em que estava e topar ganhar menos ou recomeçar em outro papel: ela não suportava mais ter que inventar histórias toda segunda-feira. Contou que precisava criar narrativas sobre o fim de semana ao lado de uma “amiga”, porque as pessoas no trabalho não poderiam saber que ela era casada com outra mulher. Já tinha, inclusive, ouvido do RH que isso poderia prejudicá-la na progressão de carreira.
Não são apenas relatos isolados. Um estudo da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro — a Unirio —, publicado em 2020, mostra que metade das pessoas LGBTQIA+ esconde a sexualidade no ambiente de trabalho por medo de represálias. O levantamento também mostra que 35% daqueles que decidiram se assumir homossexuais já sofreram algum tipo de discriminação velada ou direta.
O problema é mais grave entre as pessoas transsexuais. Uma pesquisa feita pela Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra) mostra que 90% das mulheres trans hoje se encontram na prostituição por falta de oportunidade de trabalho. Quando há uma oportunidade, as empresas ainda não estão preparadas para acolher essas pessoas.
Os dados numéricos ganham contornos de realidade quando me lembro do relato que ouvi de uma mulher trans, a qual, durante o processo de admissão, foi questionada sobre seu “nome verdadeiro”. Conheci, ainda, a história de outra mulher, também trans, que lidava com infecções urinárias frequentes, por não poder usar o banheiro feminino, e ser ameaçada ao usar o masculino.
A palavra para definir a realidade de ambientes de trabalho com cenas de indiferença, desprezo e hostilidade, como as que ouvi e relatei aqui, só pode ser uma: desamor. Porque é essa a sua definição no dicionário. Esse desamor vai além de uma suposta falta de afeto ou de afinidade, e se manifesta de forma prática: onde falta amor, não há espaço para diversidade, inclusão e pertencimento — temas tão caros para as empresas e para as culturas organizacionais nos dias de hoje.
Esses três conceitos muitas vezes são utilizados à exaustão, sem que, no entanto, se atente ao seu real significado. É necessário entender o que eles significam, para então compreender como se relacionam com o conceito de amor como prática transformadora.
Diversidade, em uma primeira leitura, sem cunho social, nos remete à variação de características e diferenças. Não somos todos iguais. Ainda bem. Portanto, ter diversidade em um espaço significa que a nossa realidade como sociedade está representada ali, naquele microuniverso. Isso não deveria ser nada além de natural e desejável. Entretanto, não é o que acontece.
Trabalhamos em espaços que excluem pessoas o tempo todo, e isso é normalizado nos discursos disfarçados de meritocracia; nos processos de recrutamento e seleção que não selecionam perfis distintos; nos processos de reconhecimento e promoção que não premiam o diferente; nas decisões sobre quem irá assumir papéis de liderança. Há diversidade na liderança de sua empresa? O resultado desses processos é um ambiente de trabalho que não reflete as nossas diferenças enquanto seres humanos.
Inclusão, lá na base, é como tratamos, acolhemos e escutamos as pessoas em sua pluralidade. Significa colocar em prática e transformar em ação a ideia de que toda pessoa importa, buscando soluções para que isso se concretize. Pensamentos, sentimentos, existências e perspectivas alheias importam.
Inclusão não é sobre baixar a régua; é sobre possibilitar acesso, alcance, autonomia para todas as pessoas, tirando do caminho barreiras que impedem que elas façam parte de algo coletivo. Inclusão, ainda, implica tirar os filtros de preconceito e exclusão, disfarçados de pré-requisitos e competências desejáveis.
Finalmente, pertencer é não sentir medo. Aquele que pertence sente segurança para ser quem é. Quando estamos seguras para sermos quem somos, podemos fazer coisas incríveis. Pessoas diversas e que se sentem incluídas fazem da empresa um espaço de inovação e criação de futuros.
Essas são pautas da agenda das lideranças que muitas vezes não encontram ponte para realidade. Falta o quê? Falta amor. O amor como prática e ética tem uma força transformadora. Todavia, onde há exclusão e medo, a prática amorosa fracassou.
Sinto-me aqui compelida a deixar algo claro: o amor não tem nada a ver com fraqueza ou irracionalidade, como se costuma pensar. Ao contrário, significa potência. Anuncia a possibilidade de rompermos o ciclo de perpetuação de dores, de exclusões como racismo, sexismo e homofobia. Ao interromper os atos de desamor, estamos prontos para explorar caminhos rumo a uma “”sociedade amorosa”.
O amor, portanto, é forte e racional, porque, em sua prática, analisa a sociedade pela ótica da diversidade, da inclusão, da pertença. Em sua força, abarca as diferenças que nos constituem enquanto indivíduos, permite acolher para que todos façam parte e se sintam incluídos, provê a segurança na qual o sentimento de pertença pode se desenvolver.
Se o desamor é a ordem do dia no mundo contemporâneo, falar de amor pode ser revolucionário e transformador. Não o amor romântico, abstrato e desconsiderado nas relações profissionais, mas a potência libertadora de relações pautadas por uma ética amorosa. Inclusive e, principalmente, dentro das organizações.
Amar, então, é muito mais que alimentar uma “afeição profunda por outra pessoa”, como em definições já conhecidas. A melhor definição de amor é aquela que nos faz pensá-lo como ação ou prática, segundo o psiquiatra M. Scoot Peck. O amor, por vezes, escapa ao entendimento, porque é complexo. Tem em si misturado vários ingredientes: carinho, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança.
A autora e professora Bell Hooks esclarece que o amor é uma prática capaz de transformar dinâmicas de poder nas nossas relações cotidianas, e acredito que aí esteja sua maior força.
Seguindo os passos de pessoas que ofereceram o amor como arma poderosa de luta e de transformação das dinâmicas sociais — como Martin Luther King Jr., por exemplo —, Bell Hooks reposiciona esse sentimento como uma força capaz de transformar todas as esferas da vida: a política, a religiosa, o ambiente doméstico, as relações afetivas e as empresas.
Amor é luta. É força primordial para a destruição de dinâmicas preconceituosas e para a construção de uma sociedade mais justa. Viver dentro de uma ética amorosa é uma escolha de se conectar com o outro. A indiferença é inércia e desconexão. É o ódio, destruição, descompasso, atraso.
É preciso ressignificar o amor, redimensionar seu lugar em nossas vidas. Se você encara o amor como ação, irá se ver com a obrigação de assumir responsabilidades e se comprometer com o enfrentamento às injustiças sociais, reino do desamor materializado na Terra.
É por meio da construção de uma ética amorosa que seremos capazes de criar uma sociedade verdadeiramente igualitária, fundamentada na justiça e no compromisso com o bem-estar coletivo. O amor como ética é um desafio à nossa postura no mundo e dentro das empresas.
Por isso, o amor é a ordem do dia e do mês. Não só de junho, mas de todos. O amor, mais que celebrado, precisa ser urgentemente conquistado, por meio de novas atitudes que podem começar pela reflexão: quais práticas amorosas movem você?
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